*João Matta
Viramos o século (XX para XXI) enfraquecendo nossas instituições modernas, deslegitimando-as como referência. Falo da Escola, do Estado, do Hospital, da Polícia, do Museu e da própria família moderna, tão enviesada em discursos politiqueiros e populistas. Hegemonicamente, nossas práticas de consumo e construções midiáticas tomaram o lugar destas instituições, como legítimas referências em nossas vidas. Em vez de as tencionarmos em seus formatos disciplinadores, para assim serem cada vez melhor a nosso serviço, resolvemos substituí-las. Muitos de nós consultamos mais o doctor Google ou o grupo de whatsapp, que propriamente um médico, quando o assunto é a própria saúde ou de seus familiares.
Uma preocupante maioria busca o saber nestas mesmas “fontes”, sem a devida curadoria de estudiosos e cientistas, que tanto nos entregam preciosos tijolos para a construção do sonho moderno. Essas nossas instituições perderam espaço, por inúmeras razões, para a mídia e para o consumo.
Dentre estas instituições, a reinauguração do Museu do Ipiranga nos leva a pensar nos museus, enquanto instituições modernas. Estes, ao redor do mundo, são comumente inseridos em listas de atrações turísticas, consideradas verdadeiros sonhos de consumo para populações de países mais periféricos, como é o caso do Brasil.
Pacotes de viagens de operadoras de turismo afirmam ser imperdíveis este ou aquele museu nas principais metrópoles do dito primeiro mundo. Realmente, muitos deles são imperdíveis, assim como são, muitos e muitos outros imperdíveis, que a priorização deste circuito de espetacularização turística deixa de lado. Museus com quadros de pintores consagrados, com peças históricas, algumas que precisariam até ser devolvidas ao seu país de direito, e outros com exposições de arte, com o propósito de problematizar o próprio conceito de arte.
Todos muito relevantes e que devem ser visitados, mas a sociedade do espetáculo não economizou esforços para transformá-los em um lugar restrito a selfies, compra de suvenires e uma experiência objetiva demais para aflorar o “frio na barriga”, o arrepio diante de algumas peças, típicas reações da subjetividade humana.
É óbvio que não trato aqui de uma demonização das práticas turísticas, de entretenimento e de seus ganhos financeiros, mas sim de um gap histórico no valor social de um museu para a sociedade moderna. Ao ser percebido apenas como um lugar para visitação de objetos marcados pelo passado, o museu esvazia sua alma e a deixa para trás. Em nossas sociedades atuais, há uma clara perda da legitimidade simbólica do museu como instituição, que representa também o presente e o futuro, não apenas o passado.
Museu é lugar de pesquisa, é instituição científica, onde o passado dá sentido e contorno ao presente e ao futuro. Atrás das paredes, em ambientes que seus visitantes não veem, há muita gente capacitada para desvendar, entender, analisar e interpretar os segredos trazidos por objetos de nossa história. À maneira dos melhores detetives, cientistas reconstituem sociedades, entendem culturas, desvendam relações sociais desconhecidas até então. O museu é um lugar vivo. Onde se faz ciência e constrói conhecimento, a partir de informações históricas que são encontradas ao longo de nosso percurso cultural.
É o caso do nosso Museu do Ipiranga. Sua reinauguração nos deixa como dever sua visita. Não só para admirar os objetos, mas também para legitimá-los como nossa instituição de produção de conhecimento. Nossa história está sendo ainda escrita, e assim o será para sempre.
Colonizadores impuseram seu tom do que é o Brasil desde seu começo, inclusive antes dos portugueses aqui colocarem seus pés europeus. Será que a história contada pelo Império é realmente a história do povo brasileiro? Sem dúvida, é uma versão, sob o olhar colonizador. Há outras, inclusive dos colonizados, que aqui estavam. Pesquisas, minuciosas investigações realizadas por aqueles especialistas de lugares de conhecimento como é o museu, podem dar mais sentido à nossa história.
O grito do Ipiranga, retratado em um quadro à moda napoleônica, mais francesa do que brasileira, pouco pode contar sobre nossa história de povo independente. Mas, é esta cena que habita nosso imaginário brasileiro. Às margens de um riacho, que não podemos ver mais pois engolido pelo asfalto, foi dado o “grito”. Este só foi realmente autenticado no decorrer do tempo, com mudanças sociais e econômicas, que deram sentido real à nossa independência.
Desta forma, a reinauguração do Museu do Ipiranga não tem apenas um valor turístico e de entretenimento para brasileiros e visitantes, mas um posicionamento político importante. Precisamos revitalizar e dar um sentido realmente de independência à nossa história. Esta precisa ser incrementada, tensionada em suas versões colonizadas, contada a partir de seus agentes e atores de forma inclusiva. E um museu é exatamente a instituição capaz de realizar este tipo de transformação.
Torcemos para que o nosso Museu do Ipiranga seja até mesmo como uma instituição científica brasileira e consiga legitimar-se como independente no papel de documentar nossa história, fora dos “cercadinhos” extremistas, que não cessam de fabular versões não científicas de nós. O Brasil merece conhecer sua história e o Museu do Ipiranga é parte insigne desta. Boa visita a todos.
João Matta é professor nos cursos de Publicidade e Propaganda e Ciências Sociais e de Consumo da ESPM. Doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP e University College of London), mestre em Comunicação e Práticas de Consumo (ESPM), e pesquisador de abordagens etnográficas.