No Brasil, a questão da intolerância religiosa permanece preocupante. De janeiro a junho de 2024, o Disque 100 — canal de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos — registrou um aumento de mais de 80% nas denúncias contra liberdade religiosa em relação ao mesmo período do ano anterior, segundo o Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos.
Um grupo em particular é especialmente afetado: praticantes de religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé, são as principais vítimas de discriminação, como mostra o Relatório sobre intolerância religiosa: Brasil, América Latina e Caribe, publicado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO.
Os dados do Ministério de Direitos Humanos também revelam que a maior parte das vítimas de intolerância religiosa (60% do total) são mulheres. Um número crescente desses casos ocorre no ambiente de trabalho, envolvendo humilhações impostas por colegas ou superiores.
A psicanalista e Presidente do Instituto de Pesquisa de Estudos do Feminino e das Existências Múltiplas (Ipefem), Ana Tomazelli, alerta para o impacto profundo que essa intolerância pode ter na saúde mental dos colaboradores. “Os valores religiosos não estão confinados apenas a templos ou locais específicos. Eles também fazem parte da vida cotidiana das pessoas e se manifestam através de roupas, acessórios e comportamentos”, explica Tomazelli. Ela afirma que a falta de entendimento e respeito no ambiente corporativo reflete um cenário maior de preconceito na sociedade. Para muitos trabalhadores, o simples uso de símbolos religiosos ou o seguimento de práticas culturais representa um desafio que pode se tornar extenuante e levar a questões sérias de saúde mental.
Religião, diversidade e saúde mental no trabalho
A relação entre religião e trabalho vai muito além do que se imagina. Diversos estudos confirmam que a presença de políticas de diversidade e inclusão — que abarquem não só gênero, raça e orientação sexual, mas também religião — melhora a produtividade e o bem-estar dos funcionários, mitiga riscos de processos trabalhistas, contribui para a atração e retenção de talentos.
Tomazelli observa que as práticas religiosas, especialmente de religiões de matriz africana, enfrentam resistência que se manifesta em situações vexatórias e restrições que vão desde o uso de acessórios até a imposição de normas incompatíveis com a diversidade. Ela destaca: “Enquanto a maioria das empresas aceita o uso de terços ou japamalas, guias e outros símbolos das religiões afro-brasileiras são, muitas vezes, vetados. Isso revela um preconceito estrutural que está entrelaçado com racismo e xenofobia, e que impacta diretamente a saúde mental dos colaboradores.”
A falta de inclusão religiosa nas políticas de diversidade é uma lacuna crítica, especialmente no Brasil, onde há uma predominância histórica de uma matriz religiosa cristã. Segundo Ana Tomazelli, esse desequilíbrio afeta diretamente a saúde mental de muitos colaboradores, principalmente os de religiões menos compreendidas. A especialista enfatiza que “a conversa sobre religião no ambiente de trabalho deve ocorrer para que as empresas promovam um ambiente realmente inclusivo”. Desafiando a máxima de que “religião não se discute”, Ana também é co-fundadora do Ipecre – Instituto de pesquisa e estudos em Ciência da Religião, uma ONG que promove conhecimento para a garantia das liberdades religiosas e promoção da paz mundial.
Desafios e caminhos para o respeito à diversidade religiosa
A pressão para que a prática religiosa não interfira no ambiente corporativo, embora válida, deve ser equilibrada com o direito dos colaboradores à expressão religiosa. Estudos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostram que ambientes de trabalho que não acomodam a diversidade de crenças religiosas costumam apresentar maior rotatividade de colaboradores e níveis elevados de estresse entre seus membros.
Para Ana Tomazelli, é fundamental que o respeito seja bilateral: “O ambiente de trabalho não é lugar para conversão, mas também não deve ser um espaço de restrição à identidade religiosa do colaborador.” Ela acredita que as empresas precisam rever suas políticas e estabelecer protocolos que permitam uma convivência harmoniosa. Segundo a especialista, “negar o direito a símbolos religiosos sem justificativa racional e contextualizada é um ato de discriminação”.
Impacto da intolerância na saúde mental
O desgaste emocional causado pela intolerância religiosa afeta diretamente a saúde mental dos colaboradores, impactando nos índices de ansiedade e depressão. Muitos, ao sentir-se desrespeitados ou incompreendidos, recorrem a tratamentos de saúde mental para lidar com o estresse acumulado. Tomazelli afirma que “a intolerância é um tipo de violência simbólica, e como tal, ela afeta a autoestima e a capacidade de concentração do colaborador”.
O Brasil, sendo um dos países com uma das legislações mais amplas sobre liberdade religiosa — conforme assegura o Artigo 5º da Constituição Federal —, ainda enfrenta dificuldades para fazer valer essa proteção no dia a dia. A discriminação e a violência decorrentes da intolerância religiosa, especialmente contra religiões afro-brasileiras, precisam ser combatidas de maneira mais incisiva. Ana Tomazelli conclui com uma reflexão: “As empresas precisam se perguntar o que ganham ao proibir símbolos religiosos e o quanto poderiam ganhar promovendo o respeito à diversidade religiosa, mas eu já adianto – elas ganhariam segurança psicológica e isso significa um incremento de até 7% nos resultados financeiros da empresa.”